A Herdeira das Sombras - As Joias Negras #02

Autora: Anne Bishop
Título original: Heir to the Shadows
Tradução: Cristina Correia
Série: As Joias Negras
Editora: Saída de Emergência Brasil
Páginas: 480
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Sinopse: Há 700 anos, num mundo governado por mulheres e onde os homens são meros súditos, uma profetisa viu na sua teia de sonhos e visões a chegada de uma poderosa Rainha. Jaenelle é essa Rainha. Mas mesmo a proteção dos Senhores da Guerra não impediu que os seus inimigos quase a destruíssem. Agora é necessário protegê-la até as últimas consequências. Três homens estão dispostos a dar a vida por Jaenelle. Mas há quem seja capaz de tudo para controlar ou destruir a Rainha. Conseguirá ela cumprir seu destino como detentora do maior poder que o mundo já conheceu?

Caso não tenha lido ainda A Filha do Sangue, resenhado aqui, tenho o dever de avisar que provavelmente haverão spoilers do primeiro livro da trilogia, pois A Herdeira das Sombras trata, principalmente, sobre as consequências dos trágicos eventos que decorreram anteriormente, além da própria continuação da história.

Caso não queira ler a resenha após meu aviso, só precisa saber que além do texto fantástico, o trabalho estético dessa edição também não deixa nada a desejar para o primeiro livro da trilogia. Acredito que merecia outro prêmio – já que A Filha do Sangue ganhou um prêmio pela diagramação da capa.

Em A Filha do Sangue, somos apresentados a esse mundo complexo com suas regras, aristocracia e devassidão. Acompanhamos o crescimento da pequena Jaenelle da maneira como nos foi permitida e compartilhamos seu sofrimento até o fim.

Agora, em A Herdeira de Sangue, nós temos o maior desenrolar da história até então, além de um profundo amadurecimento de nossos protagonistas principais. Devo confessar aqui que este foi um dos textos mais difíceis de escrever porque odeio spoilers - e não se preocupe porque não contarei nenhum -, mas acontece tanta coisa nesse livro que tive que pensar vinte mil vezes na melhor forma de descrevê-lo sem deixar escapar nada.

Depois do triste incidente no fim do primeiro livro, Jaenelle tem seu cálice quebrado e é apenas graças a Daemon que ela sobrevive. Mas, como diz a frase favorita de Saetan, “tudo tem um preço”. E Daemon terá que pagar muito caro.

Para quem não leu o livro ainda, o cálice representa nossa mente, nossa sanidade, nosso “eu” interior. E para resgatar Jaenelle das profundezas do abismo da mente da Feiticeira, Daemon quebra seu próprio cálice - que é consertado pela feiticeira dentro da mente dela -, mas ao forçar o retorno da feiticeira ao corpo que lhe pertencia, o cálice do Príncipe dos Senhores da Guerra se torna extremamente frágil.

Ao mesmo tempo, Lucivar foi sentenciado a uma vida de escravo nas minas de sal de Pruul, onde passará pelos piores sofrimentos até então. Pois, além das surras e da fome, viver na mina significa nenhum espaço para deitar e abrir as asas que, junto à umidade e ao sal do local, criam um mofo que deteriora suas belas penas.

Mas, pelo menos no começo, as coisas irão melhorar para Jaenelle. Saeten exige a guarda da feiticeira para o Conselho das Trevas. E quando alguns membros do Conselho se manifestam contrariamente, ele apenas os pulveriza. Até conseguir, por unanimidade, todos os direitos parentais referentes a Jaenelle Angelline. 

Só que para consertar todas as peças quebradas de seu cálice interior, além de seu corpo ferido, Jaenelle se fecha em sua própria mente. Vivendo assim em um coma por dois anos.

“Maldita seja, Hekatah e suas intrigas pelo poder. Puta gananciosa e maligna.” Saetan, p. 33

A frase acima resume muito bem o livro. Hekatah é uma vilã para se odiar e é a causa de todos os problemas. Durante a história ela continua criando intrigas e dificuldades para os personagens principais (e dando muita raiva a nós, leitores). Dorothea, a pedófila incestuosa e fiel escudeira de Hekatah, está aterrorizada agora que Daemon se livrou do Anel de Obediência e tem certeza que ele virá atrás dela por vingança. O medo dela é tão grande que desconfia de todos, acreditando que tudo é um engodo criado por Daemon para acabar com ela para sempre.

E é Dorothea quem mostra o lençol com sangue de Jaenelle para Lucivar acreditar na morte da jovem feiticeira pelas mãos do irmão pois “As palavras mentem. O sangue não”. (p. 39)

Por acasos do destino, Lucivar realmente acredita que Daemon matou Jaenelle e promete se vingar do irmão antes de morrer. Ao mesmo tempo que o próprio Daemon não consegue se lembrar do que ocorreu naquela fatídica noite por conta de seu frágil estado mental. Daemon, então, entra em uma busca desesperada para descobrir o que realmente aconteceu com Jaenelle quando um dos estratagemas de Hekatah se torna demais para sua frágil mente.

“Voltou a gritar, caindo na passagem interior estilhaçada, que os plebeus chamam de loucura e os Sangue, de Reino Distorcido.” (Daemon, p. 58)

Ao mesmo tempo que tudo isso está acontecendo, a teia (vulgo, feitiço) criada por Jaenelle enquanto vivia em Briarwood (durante o primeiro livro) entra em atividade. Não sei se todos os leitores repararam sobre as pequenas menções a isso, mas o que interessa é que como o sangue da Feiticeira foi derramado, todos os “tios” irão receber o que merecem. Pois, “Não existe cura para Briarwood” (Rose, p. 50). E a vingança e a ira de Jaenelle não podem ser aplacadas.

Neste livro, Anne Bishop mantém sua fórmula maravilhosa de não ter, em momento algum, o ponto de vista de Jaenelle. Eu já falei antes, mas devo me repetir, isso é incrível. Nunca em minha vida havia lido algo assim. Você pode até imaginar, mas no fundo não tem ideia do que esperar porque simplesmente não sabe o que acontece na mente dela.

Além disso, algo que me chamou muito a atenção nessa continuação foi sobre como lidar com as consequências de trágicos eventos. Jaenelle não é a mesma de antes. Já está prestes a completar 15 anos, perdeu dois anos se recuperando em estado de coma e ainda tem que aprender a lidar com todas as feridas emocionais que carrega. Para conseguir seguir em frente, a Feiticeira apagou da memória os sofrimentos que passou antes e, assim, Daemon foi esquecido também.

Ela não se lembra de nada, mas sabe que algo aconteceu. Ela sente. Odeia o próprio corpo sem saber por quê e se distancia das pessoas que a amam inconscientemente. É muito interessante analisar isso porque temos uma mulher lidando com uma dor terrível e, ao mesmo tempo, nos é apresentado uma inversão de papéis na história.

Saetan agora é quem obriga Jaenelle a sair e se envolver com outras pessoas. Ele acredita na recuperação emocional de sua filha e é uma das principais razões para seu amadurecimento. Outra inversão são todos os seres que a feiticeira visitava quando criança, sejam eles outras feiticeiras ou parentes dos Sangue, vão atrás dela para se certificar que está bem e segura. Todos a amam e a fazem voltar a viver pouco a pouco, mas a recuperação é lenta e demorada.

Uma das melhores partes do livro é essa reunião da Jaenelle com todas as suas amizades de infância. Apesar de ser considerada uma dark fantasy (pessoalmente, não a considero tão pesada assim para entrar nessa categoria), nos são apresentados momentos leves e descontraídos de amigos se reencontrando depois de um longo tempo e fortalecendo os antigos laços, além de criarem novos.

E, agora, Saetan se sente também responsável por todos esses jovens seres que aparecem na sua porta atrás de sua filha. Ele organiza da melhor forma possível o convívio entre todos e oferece sua proteção a cada um. Além de começar um contra-ataque Hekatah que vai minar pouco a pouco as forças dessa maldita, mas não pense você que isso a fará desistir.

Herdeira das Sombras é dividido em cinco partes distintas que mostram diferentes fases dos protagonistas. A questão do tempo é algo muito importante porque cada parte se passa alguns anos depois da anterior e nos mostra os personagens amadurecendo de acordo com os problemas que surgem em cada época. A partir da terceira parte você entra em uma transição da história que irá nos preparar para o que vamos enfrentar no último livro da trilogia principal. Você tem um clímax diferente em cada uma das três partes finais porque são apresentados os fatores finais que forçam o crescimento de Jaenelle como a detentora do maior poder mágico de todos os Sangue.

A terceira parte do livro começa com Lucivar que, depois de cinco anos nas minas de sal, está pronto para morrer. Suas asas estão fracas demais e ele ainda deve cumprir sua promessa de matar Daemon, responsável pela morte de Jaenelle (na mente dele). Enquanto Daemon se afunda mais e mais no Reino Distorcido – correndo o risco de não ter mais volta –, e os parentes dos Sangue (seres que não necessariamente têm uma forma humana, mas possuem o poder dos Sangue) são caçados e cruelmente assassinados por sua pele ou seu território.

Sei que tudo parece tristeza e sofrimento - e grande parte realmente é -, mas você não deve perder a fé. Tolkien, gênio literário que nem precisa de apresentações, escreveu sobre como do caos se dá a ordem, sobre quando tudo dá errado e só resta escuridão - surge uma luz de esperança que é a reviravolta da história. Assim, Jaenelle se vê obrigada a recuperar toda a memória, enfrentar seus demônios interiores e tomar decisões que não queria apenas para poder salvar todos aqueles que ama, sejam eles humanos ou não.

Na minha resenha de A Filha do Sangue eu citei uma parte da Carta do Editor que diz como, apesar de toda a fantasia, essa é uma história sobre o amor. E é exatamente esse sentimento que faz o mundo girar e movimentar as pessoas. Todos os personagens tomam decisões difíceis em prol de outros porque os amam. Cito a Tersa (uma das minhas personagens secundárias preferidas), que mais uma vez tem um papel importante na história de Jaenelle, e que conseguiu me enganar direitinho no primeiro livro. Normalmente tenho facilidade para saber para qual direção o enredo está me levando e eu tinha certeza absoluta que a visão e os avisos sobre o cálice quebrado eram sobre Jaenelle, mas agora eu compreendo que o tempo todo era sobre Daemon. Ela sempre se preocupou e cuidou do filho como lhe foi permitido. Seu amor por ele é maior que a loucura e ficou muito claro neste segundo livro a ligação entre mãe e filho.

Além de toda a bagagem emocional, outra coisa muito interessante – que também reparei no primeiro livro – é como esses machos dão a própria vida pela de Jaenelle, e, no fim, apenas ela tem o poder de salvá-los de si mesmos. Foco apenas nos machos nesta questão já eles dividem o protagonismo com Jaenelle, e também porque é muito bom ver esse equilíbrio de necessidades entre homens e mulheres.

Acredito que, caso tenha uma boa experiência literária no gênero, não tem como não gostar dessa fantasia. Parafraseando minha amiga Izabela, essa história é maravilhosa, terrível e escandalosamente boa. É o tipo de livro que fará sua cabeça rodar e também gritar com a editora Saída de Emergência por não ter publicado ainda e nem falado sobre a previsão do último livro da trilogia, A Rainha das Trevas. Digo por experiência própria. ;)