Auto da Barca do Inferno

Autor: Gil Vicente
Organização e Comentários: Segismundo Spina
Editora: Ateliê Editorial
Páginas: 200
Onde encontrar: Submarino | Saraiva | Livraria Cultura
Sinopse: As três peças reunidas nesta edição estão entre as mais representativas do teatro ibérico medieval. Apesar da diversidade de temas e estilos, todas elas se caracterizam pelo rigor poético e pela visão crítica em relação à sociedade da época. Essas obras contêm também humor refinado e aguda ironia, traços singulares de Gil Vicente. Segismundo Spina, professor emérito da USP, sintetiza no prefácio o que os críticos literários produziram nas últimas décadas sobre as obras do escritor português.

O que eu mais adoro a respeito do curso de Letras são as aulas de Literatura e a oportunidade única que elas oferecem para conhecermos uma obra a fundo. Trouxe para vocês ano passado Auto da Compadecida, lembram? O livro sobre o qual falarei contém três peças icônicas do teatro de Gil Vicente: Farsa de Inês Pereira, O Velho da Horta e Auto da Barca do Inferno. Resenharei, no entanto, apenas essa última, pois ela possui diversas conexões com Auto da Compadecida, como vocês podem ter notado! Falaremos sobre isso em breve. Vamos por partes!
Gil Vicente foi uma figura histórica sobre a qual não possuímos muitas informações biográficas, ele vive durante o século XV e é conhecido como o último escritor medieval por excelência, mesmo sua época já sendo considerada como Renascimento. Por quê? Por conta do teor moralizante de suas peças, nas quais o objetivo era criticar o comportamento da sociedade portuguesa que se afastava dos valores católico-cristãos da época.
Chamo atenção para algumas características estruturais da peça antes de entrarmos nos detalhes mais teóricas! Auto da Barca do Inferno é escrita em redondilha maior (versos com sete sílabas poéticas)

"DIABO: Não vos punham lá censura
no vosso convento santo?
FRADE: E eles fazem outro tanto
DIABO: Que preciosa clausura.
Entrai, Padre, reverendo.
FRADE: E para onde levais gente?
DIABO: Para aquele fogo ardente
Que não temeste vivendo.", p. 120
Possui personagens estereotipados (ou como, nós, estudantes de letras, gostamos de chamar: alegóricos) que representam uma grande parcela da sociedade portuguesa. Então vemos chegar ao porto com as Barcas desde um padre até um trambiqueiro.

Acredito que uma das perguntas mais recorrentes entre os leitores seja: de onde o autora tirou inspiração para criar sua obra? Nesse caso temos uma resposta concreta! O imaginário medieval é bastante presente em Auto da Barca do Inferno; alguns exemplos (não todos, ok?) são as Barcas (de Caronte), a Nau dos Loucos e a Dança dos Mortos.

Falemos sobre Caronte. Vocês o conhecem da mitologia grega: ele é o barqueiro que fica às portas do Hades esperando as almas recém falecidas e conduzi-las ao Mundo Inferior. Do mesmo modo, Gil Vicente coloca o Anjo e o Diabo como condutores das barcas que levarão as almas que chegam a esse local intermediário.



A Nau dos  Loucos era uma embarcação na qual os mais indesejados da sociedade eram postos e levados para longe. Essa ideia permeia em Auto da Barca do Inferno, pois esses indesejados são muitas vezes alegorias para os vícios humanos, ou seja, não seguidores da doutrina moral e religiosa da época. Já a Dança dos Mortos possui uma finalidade pedagógica, ilustrando que perante a morte todos são iguais, ou seja, não importa quem você tenha sido em vida, você irá morrer de qualquer forma.

E é esse gancho que torna Gil Vicente interessante: a forma como ele trabalha a condenação à Barca do Inferno. As almas já chegam a esse limbo condenadas, ou seja, não há chance para salvação, por mais que elas tentam mudar essa realidade! Conversam com o Diabo, que simplesmente lhes diz que não há escapatória, é melhor que entrem na barca; os recém-chegados, no entanto, insistem e tentam argumentar com o Anjo, que simplesmente reafirma a sentença já dada a eles, dizendo que suas sentenças já haviam sido proferidas enquanto estavam vivos, ou seja, não seguir os preceitos católicos foi precisamente o que os condenou.

Percebem aí a crítica à sociedade? Ao condenar determinados comportamentos, Gil Vicente trabalha com o (sub)consciente de seu grande público; afinal, suas peças eram encenadas em praças públicas, em igrejas, pontos com alta concentração de pessoas.

Vale compararmos um pouco aqui a leitura que fizemos de Auto da Compadecida. Na obra de Ariano Suassuna, há a chance das personagens se redimirem (irem para os Céus) mesmo após a morte, tanto que há um julgamento antes da sentença e a Compadecida pode intervir por essas almas. Algo que não acontece em Auto da Barca do Inferno: não há ninguém para interferir pelos condenados,  justamente para reafirmar esse medo subconsciente entre a população de que se eles não agissem como prega a religião cristã-católica, eles iriam para o Inferno sem sombra de dúvida.

Os únicos personagens salvos, em ambas as obras – olha que interessante – são a figura do Parvo (representado por João Grilo) e os 4 Cavaleiros (representado pelo Cangaceiro Severino). Por que essas personagens são salvas? São salvos, porque o Parvo não erra por malícia, ou seja, não faz mal a ninguém tendo previamente planejado isso (dessa forma, João Grilo monta sua defesa, alegando que pecava – mentia – simplesmente por sobrevivência, logo, tem outra chance para provar que sua alma pode ser salva); os Quatro Cavaleiros o são, pois funcionaram como instrumentos da cólera (justiça) divina, o lugar deles na Barca da Glória está garantido.
Eu recomendo, caso você se interesse por essa peça, assim como por Gil Vicente, que você leia Auto da Lusitânia. Essa é aquela peça com os personagens "Todo Mundo" e "Ninguém", cujos objetivos também são moralizantes e visam a reflexão por parte daqueles que assistem e leem. Gil Vicente pode ter escrito em 1517, porém a sátira social que construiu vale até hoje.
"SAPATERIRO: Pois digo-te que não quero!
DIABO: Que te pese, hás de ir, si, si!
SAPATEIRO: Quantas missas eu ouvi, não me hão elas de prestar?
DIABO: Ouvir missa, então roubar - é caminho para aqui.", p. 117
E aí, o que acharam?
Relembraram algum conteúdo escolar?
Até a próxima!


19 comentários :

  1. O livro parece ser interessantíssimo, mas nunca li uma peça como esta, então não sei se conseguiria absorver todas as mensagens que a obra passa. A sua resenha está magnífica! Até mais ;)

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  2. Oi Izabela!
    Que livro intrigante é esse? Gostei demais de o Auto da Compadecida. E esse livro me pareceu uma obra tão boa quanto.
    Me parece que tem muitas reflexões nessa leitura, e um pouco de crítica à sociedade pelo que entendi.
    Vou procurar na biblioteca de onde moro mais obras desse autor.
    Você conseguiu instigar minha curiosidade com essa resenha.
    Abraço!

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  3. Olá!
    Adorei a resenha, me interessei bastante pela história do livro, uma vez o vi em uma biblioteca, mas não senti vontade de ler. Quem sabe agora eu não dê uma chance a ele? Sei que a história parece ser ótima, só não sei se sou maduro o suficiente para lê-lo>
    Abraços!

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  4. Olá Izabela,

    Assisti já faz um bom tempo uma peça e adorei, a platéia era a tripulação e a peça foi demais, não li o livro ainda mas espero ter a oportunidade....ótima dica...bjs.


    http://www.devoradordeletras.blogspot.com.br/

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  5. Oooi!
    Eu como uma adolescente de 14 anos tenho meus dois pontos de vistas o primeiro é que talvez eu não tenha tanta maturidade pra livros assim porém meu gosto é bem diversificado (sim, apenas com 14 anos) e tento ler de tudo um pouco e por falar no auto da compadecida já me deixou curiosa mas essa resenha não me convenceu em um todo, só lendo pra saber se irei gostar, certo? Bjs xx

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  6. Já ouvi falar do autor e da obra Auto da Barca do Inferno , que sempre as escolas pedem como peça ou estudo na parte de literatura. O auto da Compadecida do Ariano Suassuna foi um dos filmes mais engraçados e divertido que eu vi.Eu ví uma resenha sobre esta obra.A linguagem é diferente e o interessante é que não cita nomes os personagens.

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  7. Lembro que fiz uma peça dessa obra quando ainda estudava no ensino fundamental, mas naquela época eu ainda não entendia o tanto que Auto da barca do inferno representava. Infelizmente eu nunca tive interesse em ler o livro, pelo menos até agora, mas uma das coisas que mais me chama atenção nessa obra, é justamente essa igualdade de tratamento, sendo rico ou pobre, branco ou negro e etc.
    Gostei muito da resenha, e agora, assim que tiver chance, irei ler o livro. Beijo!

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  8. Oi, Izabela!
    Li O Auto da Barca do Inferno quando estava na escola ainda e lembro muito pouco, mas o que eu sei é que na época não entendi tudo não, hahaha.
    Sorte que o professor explicou e a gente compreendeu as questões medievais e representações.
    Não sei se eu leria de novo, mas seria interessante ver como minha percepção mudou de anos atrás para agora.

    Beijoooos

    www.casosacasoselivros.com

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  9. Parece ser muito bom e daqueles livros que adoraria ter lido na escola. Tem algumas coisas bem mais interessantes, um conteúdo muito legal de ler. Gostei pela crítica, adoro livros que trazem questionamentos e um jeito novo de compreender a vida ou coisas assim. E a época. Lembro de professores falando daquele o Auto da Compadecida, mas não teve muita coisa, foi mais uma dica de leitura ou coisa assim =/

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  10. Oi :)
    Li poucas peças de teatros mas as que eu li eu amei. Nunca gostei de literatura na escola mas me interesso pelo Gil Vicente e tenho muito vontade de ler Auto da Barca do Inferno.
    Beijos.

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  11. Já li esse clássico,acho legal isso da resenha de levantar pontos,buscando analisar a época,os personagens e o que o autor quis passar,traçar um comparativo com o Auto da Compadecida é interessante,esse ainda preciso ler.

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  12. leitura mais que recomendada, acho que nunca li nenhum classico que datasse do século XVI, pode se dizer que é quse nacional, jpa que o autor essa portguês. Gostei muito da resenha do livro pretendo ler assim como Auto da Compadecida.

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  13. Hey, tudo bom?
    Confesso que não leio muitos clássicos, porém esse que você resenhou é bem intrigante. Ainda não li o auto da compadecida, mas talvez leia futuramente. É bem interessante ler livros que abordam isso, julgamento final ou no caso do livro resenhado sentença final.

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  14. Não sou muito chegada a clássicos, na verdade se li 3 clássicos na vida foram muitos. Acho que o meu real problema não é com a história, mas com a escrita. E também o fato de que na escola nós meio que éramos obrigados a ler aqueles clássicos chatos, contribuiu para que eu torcesse o nariz para o gênero.

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  15. Li esse livro na escola e obrigada, não curti na época e nem tenho vontade de reler :(

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  16. li esse livro na época de escola, mas não curti muito, nem lembrava mais nada da história (e pensa numa coisa para destruir livros é esses q a gente ler por causa de nota)
    mas talvez agora sem preocupação eu consiga ler e perceber essas mensagens
    muito legal a sua aula/resenha é bom ver esclarecimentos de pessoas da area

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  17. Oi. Infelizmente não tenho interesse nesse livro, não é por ser 'clássico' eu adoro clássicos, as pessoas não buscam direito e perdem livros incríveis, mas o enredo desse é que não me chama atenção.

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  18. Nunca tinha visto nada sobre esse livro, e infelizmente não é um estilo que me deixa ansiosa para ler, sabe? Mas as pessoas que amam clássicos com certeza vão amar.
    Ler livro obrigada é horrível, já sofri essa também

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  19. Oi!
    Ainda não conhecia a obra do Gil Vicente, mas já tinha ouvido falar de suas historias, achei bem interessante o tema que ele usa e fiquei curiosa para poder conhecer esse clássico, mesmo não sendo o tipo de leitura que costumo fazer !!

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